sábado, 24 de dezembro de 2016

Seiryoku Zenyo: A essência do Judô.


                     Ao Contrário de artes marciais como o kenjutsu (esgrima), o sojutsu (uso da lança) e o kyujutsu (arco e flecha), nas quais o praticante usa armas, o judô é um método de defesa contra ataques no qual geralmente não se usam armas. Mesmo que às vezes o uso de certas armas seja aceitável, essa é uma ocorrência rara durante a prática - essa é uma característica particular do ju-jutsu. O kenjutsu, o sojutsu e o kyujutsu são artes marciais cujos nomes derivam das suas respectivas armas. O ju-jutsu, por outro lado, mesmo não proibindo o uso de armas, não se limita a nenhum método em particular de defesa contra ataques.
Há vários registros antigos transmitidos através dos tempos sobre o verdadeiro significado do termo "ju-jutsu", mas poucos deles são precisos. Pode-se dizer que esse nome aparentemente deriva de ju yoku go o seisu, que pode ser traduzido como "o suave controla o duro". Essa expressão merece uma atenção maior.
Vamos imaginar que eu tenha um oponente cuja força, numa escala de 1 a 10, tenha uma potência 10, e precise enfrentá-lo com minha força de potência 7. O que acontecerá se eu resistir quando meu oponente me empurrar com toda sua energia ? Serei vencido, mesmo que eu use toda minha força. Se, em vez de resistir a esse oponente que é mais forte do que eu, eu me adaptar e me ajustar à força dele e me afastar, ele cairá para a frente, impulsionado pela força de seu próprio ataque. Sua força de potência 10 se tornará apenas uma força de potência 3 e ele tropeçará e perderá o equilíbrio. Eu não estarei desequilibrado e, portanto, poderei me afastar, manter minha postura e minha força original, de potência 7.
Em resumo, se resistir a um oponente mais forte, você será derrotado; mas, se você se ajustar e evitar o ataque do oponente, fará com que ele se desequilibre, tenha a sua força reduzida e seja derrotado. Essa estratégia pode ser usada seja qual for a "potência" da força usada, e possibilita que oponentes mais fracos vençam outros muito mais fortes. Essa é a teoria do ju yoku go o seisu.
Contudo, com uma observação mais atenta, torna-se óbvio que nem sempre podemos explicar as coisas usando a teoria do ju yoku go o seisu. Imagine que alguém segure meu pulso. O punho se tornará o ponto de apoio de uma alavanca. Se eu colocar toda minha força no pulso e resistir à força no pulso e resistir à força do polegar e dos dedos que me seguram, sou claramente o mais forte. Eu tenho uma vantagem, especialmente porque  faço uso do ponto de apoio. Neste caso não é possível dizer que eu esteja vencendo meu oponente com o uso de ju yoku go o seisu. Esse é um exemplo de uma pessoa mais forte vencendo habilmente outra mais fraca, por isso existe uma diferença.
Durante uma competição, a pessoa pode chutar o oponente. Isso também não pode ser chamado de ju yoku go o seisu. Esse é um caso em que se canaliza a força numa certa direção, chutando o oponente em pontos vitais para causar dano. Ocorre o mesmo com o empurrão com um braço, com um corte com uma espada ou com um ataque com um bastão - esses ataques não se adequam à teoria do ju yoku go o seisu.
Quando visto dessa forma, o nome ju-jutsu é apenas um nome que era usado para descrever um método de defesa contra ataques em certas situações. Mas o verdadeiro sentido da arte marcial ensinada como ju-jutsu ou taijutsu não era tão simples. Ju yoku go o seisu é apenas uma teoria entre várias outras, portanto, não é uma expressão que abrange tudo. Mesmo nos chamados ju-jutsu, yawara ou taijutsu antigos, a teoria do ju yoku go o seisu não era suficientemente abrangente para explicar os vários tipos de waza, e apenas servia como uma explicação parcial.
Vejamos outro exemplo. Suponhamos que alguém o segure por trás. Tentar escapar disso usando o ju yoku go o seisu é quase impossível. Se você quiser se adaptar a essa força, o que pode fazer é expirar o ar dos pulmões e contrair o peito. Mas você não vai conseguir se soltar apenas fazendo isso. Neste caso, outra teoriadeverá ser aplicada. Quando uma pessoa segura você, inicialmente ela não pode usar muita força, então, antes que ela utilize toda força, você tem de encontrar uma maneira adequada para escapar usando um waza.
Existe uma história muito conhecida que é assim:
Um jujutsuka (praticante de ju-jutsu) foi agarrado por um lutador de sumô. Nesse momento, o jujutsuka disse " Você é um lutador de sumô e não consegue segurar mais forte do que isso ? " Irritado, o lutador de sumô resolveu ajustar sua pegada. Ao fazer isso, afrouxou os braços só um pouquinho. Nesse momento, o jujutsuka rapidamente abaixou o corpo e escapou do lutador.
O mesmo princípio se aplica a koshi-nage ( arremesso com o quadril ) no randori, mas você não vai conseguir escapar apenas com o ju yoku go o seisu. Se o oponente estiver apenas parado, relaxado ou levemente inclinado para frente, e você adotar uma postura estável, empurrar com firmeza o quadril contra ele, colocar a mão no quadril dele e o puxar em sua direção, seu quadril se torna o ponto de apoio, e o peso abaixo do quadril dele se move para trás. E quando esse peso está sobre o seu quadril, ao girar o quadril, mesmo que só um pouco, ou ao puxar a manga dele, você consegue derrubá-lo, mesmo  que ele seja grande.
Em resumo, os waza do judô se baseiam em várias teorias, Ju yoku go o seisu é apenas uma pequena parte da teoria dos antigos ju-jutsu. Mas existirá uma teoria que pode ser aplicada em todas as situações ?

Seiryoku Saizen Katsuyo

                     A energia mental e física deve ser usada da maneira mais eficiente possível para que se chegue ao resultado desejado. Isso quer dizer que é necessário que se aplique o método ou a técnica mais eficiente para o uso da mente e do corpo. Se usarmos o termo seiryoku para designar a energia mental e física de uma pessoa, isso será expresso como seiryoku saizen katsuyo (o melhor uso da energia). Podemos resumir isso como seiryoku zenyo (eficiência máxima). Isso significa que, não importa qual seja o objetivo, para atingi-lo você precisa colocar sua energia mental e física para trabalhar da maneira mais eficiente.
Se o método for atemi (golpe), você precisa golpear o ponto vital que gerará o maior efeito. Da mesma maneira, ao desferir um soco, teoricamente seu punho deve golpear um ponto vital em um ângulo reto. Não importa o quanto o movimento de seu punho seja rápido, você precisa ser rápido no momento em que seu punho golpeia o ponto vital. Se a velocidade de sue soco é alta e se a média da força com a qual você golpeia é grande, isso por si só já bastará. Assim, o princípio do seiryoku saizen katsuyo se aplica a todas as formas de atemi.
Quanto ao nage-waza, vamos imaginar que o oponente esteja de pé na sua frente. Se executar um arremesso com o quadril, você empurra o quadril contra o abdome do oponente e , usando o quadril como um ponto de apoio, o arremessa. Assim, você deve manter o apoio em um ponto onde o equilíbrio seja bom. Se o ponto de apoio for no peito, e parte acima deste ponto será mais leve que a parte de baixo, e ao menos que você tenha uma força descomunal, não vai conseguir arremessá-lo. Se o peso estiver bem distribuído, você conseguirá arremessar o oponente facilmente. Você deve usar bem esse princípio, pois ele possibilitará que você vença oponentes com o dobro ou o triplo do seu peso.
Se colocar a energia para trabalhar de maneira racional, você conseguirá derrubar uma pessoa com muito mais força que você com apenas um dedo - para qualquer direção que você a empurre, se ela estiver relaxada e com o equilíbrio fraco, ele cairá. Se essa pessoa usar a força dela para se mover para a frente, você não poderá resistir a essa força e empurrar, mas se puxar ou empurrar na mesma direção da força dela, ela se desequilibrará e nesse momento você poderá derrotá-la. Mesmo que o oponente tenha o dobro ou triplo de sua força, você pode executar seu movimento no exato momento em que ele ficar desequilibrado e poderá facilmente arremessá-lo com algo simples como uma rasteira.
Essa técnica do judô pode ser explicada com a teoria do seiryoku saizen katsuyo, mas não pode ser explicada com a teoria de ju yoku go o seisu. No caso, do o-goshi (grande arremesso com o quadril), quando o oponente é desequilibrado e se curva um pouco para a frente, você encaixa o quadril, coloca a mão nas costas do oponente, puxa-o contra o seu corpo, para cima de seu quadril, Depois disso, se você girar o quadril e puxar a manga do oponente, poderá derrubar facilmente até uma pessoa grande. Isso também pode ser explicado com a teoria de seiryoku saizen katsuyo.
Em resumo, o princípio básico do waza do judô é seiryoku saizen katsuyo. A partir daqui vou usar a forma abreviada "seiryoku zenyo" (colocar sua energia para funcionar de maneira mais eficiente), que é o princípio básico da defesa contra ataques.
Agora que esclarecemos que o seiryoku zenyo pe o princípio básico da defesa contra ataques, que tal usarmos isso para outras finalidades? Esse é um princípio básico que pode ser aplicado da mesma maneira a qualquer coisa. Quando eu era criança, aprendi o antigo ju-jutsu. Entretanto, o ju-jutsu não possuía princípios básicos. Eu aprendi vparios métodos com um mestre. Ele me ensinou como colocar o quadril e puxar para arremessar um oponente e como fazer um estrangulamento, mas não me ensinou nada sobre os princípios que havia por trás desses movimentos ou como aplicar esses princípios,. Como eu continuei estudando, descobri que cada professor ensinava de uma maneira. Não havia uma base para julgar o que estava certo. Essa é a razão pela qual comecei a fazer um estudo aprofundado do ju-jutsu.
Por fim, aprendi com muitos professores de várias escolas, mas, como um método de ensino era diferente do outro, eu achava difícil conciliar essas diferenças. Estudando ainda mais, descobri os princípios que descrevi: para atingir seus objetivos, você precisa usar sua energia de maneira mais eficiente.
Gyaku-Juji - Um encontro em Paris

                             Quando eu fui a Paris, H. Ducos* soube de minha viagem e solicitou por meio do embaixador japonês que eu desse uma palestra sobre judô. Eu já tinha saído de Paris e ia fazer uma palestra em Munique, mas quando recebi o telegrama do sub-secretário enviado pelo embaixador, retornei a Paris e dei uma palestra para um grande grupo de estudantes, oficiais do governo, soldados e atletas da École du Saar et Metier, no centro de Paris, que é uma escola semelhante a uma escola secundária técnica do Japão. Neste dia, um estudante judeu chamado Feldenkrais* se encontrava na platéia. E os questionamentos que ele fez após a palestra foram muito esclarecedores. Ele me perguntou se poderíamos nos encontrar no futuro para conversar mais. Combinamos uma data para um encontro em meu hotel. Ele tinha um histórico interessante: era um judeu nascido na Rússia, com cidadania palestina e que estudava na França. Ele falava várias línguas, inclusive inglês, alemão, russo e hebraico e falava francês como um nativo.
Ele me trouxe um livro que tinha escrito sobre judô e me pediu que desse uma olhada. Ainda não tinha sido publicado, era apenas um manuscrito batido à máquina. Ele pediu a minha opinião, mas como o livro estava escrito em hebraico, eu não compreendia. Havia algumas figuras, então pude ter alguma idéia sobre o conteúdo. Ele tinha também um tipo de manuscrito em francês e me pediu para olhar este também. Meu francês não era nada bom, mas consegui ter uma idéia básica do que havia lá. Enquanto eu lia, percebi que havia erros na maioria das partes e eu lhe mostrei vários erros. Foi muito interessante. Ele era um homem fascinante, que tinha aprendido um pouco de judô, lido vários livros e estudado muito. Eu não sabia que havia tantos livros sobre judô em línguas européias, mas quando lhe perguntei ele me contou que tinha estudado judô lendo mais de quarenta livros diferentes.
Um dos movimentos sobre o qual ele havia lido é o gyako-juji-jime (cruz reversa), em que você segura a gola do oponente com os braços cruzados para fazer um estrangulamento. O livro dele dizia que, colocando o punho na garganta do oponente e empurrando para frente, a pessoa que estava sendo estrangulada podia soltar a pegada. Feldenkrais tinha se graduado em uma escola técnica francesa e trabalhava como um tipo de assistente na Sorbonne, o que quer dizer que ele tinha o nível de instrução de uma pessoa que frequenta a escola secundária no Japão. Ele era jovem, mas por estar estudando com pessoas muito cultas, tinha também uma cultura. Ele compreendia bem a teoria.
Para lhes mostrar os erros do livro, em vez de apontá-los, eu o segurei em uma chave reversa firme e lhe disse: "tente se livrar disto!" Ele empurrou minha garganta com o punho com toda a força. Como ele era bem forte, minha garganta ficou dolorida, mas eu pressionei suas artérias carótidas pelos dois lados com as duas mãos, impedindo que o sangue chegasse à cabeça e fazendo-o desistir.
Dependendo de onde você segura o oponente, num ponto mais alto ou mais baixo, o mesmo gyaku-ju-jime fica diferente, mas Feldenkrais não tinha entendido que, se você não segurar o oponente no alto da gola, a técnica não será eficiente. O sangue não chegará à cabeça, portanto, se você segurar no ponto mais alto, quanto mais pressionar, maior será a pressão sobre a artéria carótida. Se sua pegada for muito embaixo, o oponente que tiver um braço longo e forte, poderá impedi-lo de pressionar sua carótida e você terá que afrouxar sua pegada. Essa é uma plicação da teoria de fazer o melhor uso da sua energia mental e física. Se sua pegada for baixa, o movimento não será eficiente. Se você segurar mais em cima, a pressão será aplicada na artéria carótida. Eu expliquei que ele não tinha considerado a necessidade de se aplicar pressão nessa artéria. Ele ficou muito impressionado e me pediu que eu levasse o livro comigo, para dar uma olhada quando tivesse tempo e lhe avisasse sobre outros erros. Eu lhe expliquei com delicadeza que não teria tempo para fazer correções detalhadas, mas fiz mais dois ou três comentários.
Esse encontro ajuda a demonstrar a teoria do seiryoku zenyo. O método anterior de Feldenkrais não fazia uso eficiente da energia mental e física, enquanto que o método de gyaku-juji que lhe demonstrei usava a energia mental e física de maneira mais eficiente. Todas elas devem ser amplamente estudadas e praticadas.

Kano, Jigoro, 1860-1938.
    Capítulo 2 de Energia mental e física: escritos do fundador do judô / Jigoro Kano; com uma tradução de Yukimitsu Kano ; compilado por Naoki Murata ; traduzido para o inglês por Nancy H. Ross ; traduzido para o português por Wagner Bull. - São Paulo : pensamento, 2008.